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No Natal as palavras, as imagens, os sorrisos, as mensagens, os votos, convergem para a amizade, a tolerância, o amor, a felicidade, a sorte, a bondade, a saúde… é uma altura do ano em que parece haver uma sensibilidade maior para o tema “família”.
No hospital somos (mais ou menos)
sensíveis à problemática das famílias, estamos (mais ou menos)
condicionados pelas circunstâncias de trabalho, concordamos (mais ou
menos) que a família é um dos aspetos centrais dos cuidados de
enfermagem. A família pode ser um problema, mas também um recurso. A
família também necessita de cuidados e as políticas institucionais
tendem a valorizar a família. Porém, as práticas nem sempre refletem a
intenção de pensar os cuidados através de perspetivas inclusivas, que os
humanizem.
É a este propósito que vos deixo uma
(pré)História de Natal que ilustra o quão longo é o caminho que temos a
percorrer no sentido de modificar as nossas prioridades (como
profissionais), as nossas perceções, a nossa disponibilidade, e a
atitude que alguns têm perante os familiares dos doentes e no seio da
equipa de saúde.
I parte
Serviço de Urgências, balcão de
atendimento geral, porta de entrada do hospital. Sala de espera apinhada
de macas, maioritariamente com idosos. É dezembro, a noite está fria e o
ambiente é tenso pelas horas mais ou menos longas de espera. Está uma
Árvore de Natal iluminada, ali suspensa na parede. Os doentes são
muitos e os acompanhantes imensos. Observam todos os passos da
Enfermeira, cada gesto, o que diz, os silêncios; tentam perceber o que é
dito ao doente da maca ao lado, presenciam e comentam a agonia de uns, a
prioridade de outros. Observam todos os profissionais de saúde, como
eles se comportam, como se expressam, como se relacionam.
Quando a Enfermeira passa por perto,
quase que travam uma espécie de luta por um esclarecimento, uma
informação… Interrompem o que está ou vai fazer, todos sentem o seu caso
como prioritário. Uns são mais pacientes, outros mais exaltados. Estão
muito à vontade porque ela está ali, com a porta da sua sala quase
sempre aberta, circula e vai gerindo as situações de acordo com o que
julga adequado. Porém, a Enfermeira sente que ainda é vista, por alguns
doentes e familiares, erradamente, como intermediária entre eles e o
médico, num paradigma que a coloca como auxiliar do médico, pois nem
sempre se apercebem que, para além do papel facilitador tem no processo
de cuidados, existe uma clara separação de papéis, responsabilidades e
tarefas entre médicos e enfermeiros. Nesta (pré)História de Natal a
Enfermeira realiza tarefas interdependentes da prescrição de 3 médicos:
encaminhamento para exames complementares de diagnóstico, administração
de medicamentos, algaliações, entubações, avaliações de glicémias, ajuda
na ortopedia, realização de gerdy´s, internamentos para Sala de
Observações (i.e., corredor), internamentos para os pisos,
encaminhamento para outros hospitais… não para e quando para é para
recapitular o que está feito e o que falta fazer. A Enfermeira também
intervém autonomamente, decorrendo da sua responsabilidade profissional,
junto dos doentes que vão chegando mais ou menos queixosos,
hipertensos, com cólicas renais, hiperglicémicos, com convulsões, com
situações de maior risco a necessitar de cuidados mais céleres e procura
manter uma reavaliação contínua das situações mais críticas até que a
pessoa seja observada por um médico e ela própria alerta o médico para a
prioridade de situações que se podem alterar durante o tempo de espera.
Presta cuidados aos doentes que estão em macas e precisam de cuidados
de higiene e conforto, aos que pedem água, aos que estão agitados, aos
que de repente se sentem mal na sala de espera… A Enfermeira gere a
escassez de macas, gere a angústia de quem espera e por vezes desespera,
participa na gestão do ambiente de cuidados de acordo com as suas
competências.
II parte
No meio daquela azáfama, chega a vez
de uma Idosa que se encontrava em maca ser levada para a Sala de
Enfermagem para avaliação de sinais vitais, colheitas de sangue,
canalização de veia e administração de medicamentos. A Enfermeira
pergunta a um homem que estava à porta da Sala de Enfermagem a tentar
olhar para dentro como que a ver o que se irá ali passar:
- O senhor é familiar desta senhora?
- Sou o filho.- Se quiser entrar, sente-se nesta cadeira e pode ficar aqui junto dela.
- Obrigado. – Agradeceu, entrando e sentando-se ali em silêncio.
- Vou colocar um soro para dar os medicamentos para os vómitos, e aproveitamos para tirar sangue para análises. – disse a Enfermeira à Idosa que parecia não compreender muito bem o que se estava a passar. - Depois - continuou dirigindo-se ao Filho - se o senhor não se importa, leva o sangue ao laboratório, que eu indico-lhe o caminho. Pode ser?
- Sim srª enfª.
III parte
Enquanto a Enfermeira prepara o
material, entra na Sala de Enfermagem, à La Chevalier Lagardère como por
vezes acontece – -, uma Outra Profissional de Saúde que, ao perceber
que ali estavam 2 utentes, ralhou:
- Quem é este homem? É familiar da
doente? Os familiares não entram aqui. Mas o que é isto? Os familiares
esperam lá fora. Aguardam lá fora!
- … mas, a enfermeira … - tentou justificar-se o filho da idosa,
balbuciando perante tamanha aura, tendo sido interrompido de imediato
pela Outra Profissional de Saúde que sentenciou::- Saia, já lhe disse, os familiares esperam lá fora. - Mas o que é isto?!... – continuou resmungando antipaticamente. Abriu-lhe a porta e o homem saiu.
IV parte
A Enfermeira continuou impávida e
serena a preparar o material e a contar até dez. Enquanto isso a Outra
Profissional de Saúde “consultava” a Idosa, ali na Sala de Enfermagem,
não sem antes ter frisado, falando para si mesma, que era um atrevimento
os familiares entrarem assim e estarem ali, de qualquer maneira.
- Onde é que lhe dói? Tem vómitos? Que medicamentos é que toma? NÃO OUVE?
A Idosa não respondeu e a Outra Profissional de Saúde saiu fechando a porta atrás de si.
V parte
A Enfermeira abriu a porta da Sala de Enfermagem e disse ao Filho da senhora Idosa:
- Já pode voltar a entrar.
- … mas… senhora enfermeira, a outra senhora mandou-me sair… - Mas já
pode voltar a entrar. – reafirmou a Enfermeira, tranquilamente.
O Filho entrou e sentou-se novamente
na cadeira azul, à cabeceira da maca, enquanto a Enfermeira lhe foi
perguntando se a sua mãe vivia sozinha e como era o seu comportamento
antes da ida ao hospital. O Filho foi explicando a situação de saúde da
mãe, enquanto a Enfermeira realizava os procedimentos de punção venosa.
Nisto, irrompe novamente pela sala de
enfermagem a Outra Profissional de Saúde, que, ao ver que o Filho estava
novamente dentro da sala, ordena:
- Saia! Eu não lhe disse que os familiares esperam lá fora? Saia! – Terminou, irritada.
O Filho olhou para a Enfermeira como
que a tentar perceber o que fazer ao mesmo tempo que encolhia os ombros e
fazia uma expressão facial de desagrado. A Enfermeira, mais tranquila
ainda do que anteriormente, disse:
- Fui eu que autorizei a presença do
senhor aqui na Sala de Enfermagem e a mim não me está a incomodar nada.
Se a senhora se sente incomodada, diga ao senhor para aguardar lá fora e
ele voltará a entrar quando a senhora sair.
Fez-se um silêncio e não aconteceu
mais nada. A Enfermeira continuou o seu trabalho, o Filho continuou ali,
a Idosa foi atendida, a Outra Profissional de Saúde não voltou a ter
tiques de autoridade, o Filho foi ao laboratório levar o sangue, ajudou a
empurrar a maca para a sala de espera, esteve por ali…
Publicado em
Opinião
Vanda Veiga
Enfermeira graduadaEspecialidade em Enfermagem Médico Cirúrgica
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